Os sapos e os ciganos

— Queria perguntar aos nossos futuros primeiros ou primeiras o que pretendem que o seu governo faça acerca dos sapos. — Dos sapos? Que pergunta mais idiota. Isso não interessa a ninguém, para quê uma coisa dessas? — É que na Póvoa há sapos na entrada das lojas para afugentarem os ciganos, e não acho bem, há até uma Lei sobre isso, e veio da Europa. — É bem feito, é para não ficarem com ideias. Essa agora, ciganos a comprarem na loja, vai à feira, ó manuche!

— Esta semana meti ar ao peito e disse boa tarde a umas três que se assomaram à varanda quando passava. Até estava com receio de ir falar com a cigana e perguntar-lhe dos sapos. Sei lá, podia um marido ou pai ver-me e julgar que lhe ia inquietar o lar. — O lar? isso, entre em casa deles, ainda leva uma coça! — Pois, há tantas histórias que se ouve por aí… não sabemos nada; nem sei se lhes podemos dar dois beijos na cara, se se dá um cumprimento de mão… sei lá. Boa tarde! alto e bom som, retorquiram. Com uma candura na voz que me amaciou a cautela, disseram-me que os sapos são mau agoiro, mau olhado, trazem má sorte, e é por isso que os põem nas soleiras das lojas, não querem lá ciganos. Vivo ao pé deles, a 100 metros, mas não sabia, nunca lhes tinha falado. Foi aí que soube dos sapos… São para aí uns 20 que lá vivem, a 100 metros, mas nunca lhes tinha falado.

— Que raio de coisas que está para aí a dizer, sapos… bonitos, os sapinhos, que é que têm os sapinhos? olho arregalado, de careta, há até uns assim muito pequeninos que cabem no comprimento de um polegar, diz que são da Amazónia. E depois há os que ajudamos a atravessar a rua para não serem atropelados, para a desova ou lá como se procriam. E há uns venenosos, os do demo, de cor diferente, os da fel mais corrosiva que se conhece, basta passar-lhes a mão acidentalmente pelo coiro e é tipo estricnina. Mas os das lojas são só bonecos, de plástico ou de louça, não fazem mal a ninguém, ora essa, que exagero. — Exagero? talvez… Olhe-me esta ideia: e se puséssemos uma cruz invertida com um Cristo a sangrar na entrada do Norteshopping, ou no Colombo, coisa mais natural se for de plástico ou de louça, não é? São só símbolos, é plástico, ninguém ligaria a isso, não é?

Um dia estava na Segurança Social e veio um pedir-me um cigarro, novito, para aí uns 25.  Contou-me que o pessoal da Vila gostava da porrada; que tinha estado numa ainda há dias. Mas não esteve nada, estava a inventar. Por que razão estaria a inventar, não lhe perguntei nada daquilo?… Mulher grávida ao pé, com o carrinho, e um pequenito ao colo. Pediu-me depois para lhe preencher a papelada. Não percebia nada daquilo. Ui, há anos que já não ia à escola. Partilhámos o cigarro, que era o último, e fumámos metade cada um. Vi nos seus olhos que se alegrou de me contar da zaragata (ou terá sido do cigarro?). Bom, falei-lhe… Aqui há tempos avisei sobre eles na Câmara, para lhes arranjarem umas casas ao abrigo do PER (Programa Especial de Realojamento), porque estão há anos a viver em barracas debaixo do viaduto da A28. É que depois do aqueduto de Sta. Clara ficar à vista da estrada, quando o edil decidir limpar o mato, mais perto das autárquicas, fica mal tê-los a viverem debaixo da ponte contornados por monumentos históricos. — Fica, porquê? já lá estão há tantos anos, sabe lá se querem de lá sair, eles gostam daquilo, gostam de viver assim, sempre gostaram…

— Diga-me lá, sabe quantos ciganos há em Portugal? 50.000? Mais? Será que há tantos como os chineses da Varziela? Há quantos empregados ciganos? E patrões, já trabalhou para algum? E quantos sapos? Será que há mais sapos que ciganos? Serão sapos ou serão rãs? Já pensou? É tudo igual, não é? Eu não sei nada sobre sapos, mas o senhor sobre ciganos… sabe tudo, sabemos todos.

— Olhe lá, o Quaresma até veio numa revista fina, como os outros… é ou não é? A lei diz que somos todos iguais ou não? se está na lei… isto que eu saiba já não há cá Salazares!

— Pois, já não há cá Salazares, ainda assim… Veja, há dias fui consultar o significado de “cigano” nos nossos dicionários, e deu-me isto:

ci·ga·no *
(talvez do francês antigo cigain, actualmente francês tsigane ou tzigane)
adjectivo
1. Relativo a ou próprio dos ciganos (ex.: canto cigano). = ZÍNGARO
adjectivo e substantivo masculino
2. Diz-se de ou indivíduo pertencente aos ciganos, povo nómada, de origem asiática, que se espalhou pelo mundo. = MANUCHE, ZÍNGARO
3. [Informal] Que ou aquele que leva vida errante.
4. [Informal] Que ou aquele que tem arte e graça para captar as vontades.
5. [Pejorativo] Que ou quem age com astúcia para enganar ou burlar alguém. = BURLÃO, IMPOSTOR, TRAPACEIRO, VELHACO
6. [Pejorativo] Que ou aquele que é excessivamente agarrado ao dinheiro. = AVARENTO, SOVINA

O 5º e o 6º, caramba…

— Homessa, o dicionário não tem culpa, não diz como deve ser mas diz o que é, é aquilo que se diz deles. Esta conversa não interessa a ninguém, só mesmo aos sapos.

— Pois, não dá saundebaite, não coaxa. Se ao menos os sapos fossem brancos…

Imagem de destaque: “rapariga cigana” – mosaico de Zeugma, do Museu de Arqueologia de Gaziantep.

* significado de “cigano”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/cigano [consultado em 06-08-2015].

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